1 de ago. de 2011

PSICOLOGIA DA MORTE
Vera Anita Bifulco
Psicóloga do Setor de Cuidados Paliativos da Disciplina de Clínica Médica da
Universidade Federal de São Paulo.

Falar da Morte é falar da Vida. Muitos ficarão surpresos com isso, justo a morte, assunto tido como funesto, tenebroso, a maioria foge até de pronunciar o seu nome, quanto mais dissertar sobre ela.
Mero engano. É justamente se permitindo falar dela e sobre ela que aprendemos a plenitude do significado da Vida. Deverí­amos, por ínfimos minutos diários, ter por hábito pensar em nossa FINITUDE.
Por quê? Porque, ao pensarmos que, um dia, nosso tempo de vida extinguir-se-á, fechará em seu ciclo vital, natural a tudo que é vivo, dar-nos-íamos por bem repensar na vida que levamos. Levamos uma vida ou é ela que nos leva. Esse a levamos, como efetivamente fazemos isso.
O conhecimento da finitude humana é essencial ao saber de todos que lidam com a área da saúde e educação, pois a Morte fará parte, mais cedo ou mais tarde, de seu cotidiano. Se não entendemos nem a morte nem os sentimentos nossos que a norteiam, como entender aquele paciente que tem seus momentos finais tão prementemente vividos, quais seus anseios, medos, dúvidas, inquietações? Como, efetivamente, podemos auxiliá-lo, quando sua cura já não é mais possível. Que recursos, disponíveis em nós, como seres humanos e profissionais, estariam por bem servindo a esse cuidar?
Remontemos um pouco à história para entendermos o processo de Morte e Morrer.
Aqui, faço uma referência à pioneira do estudo sobre Morte e Morrer, Elisabeth Kübler-Ross, médica psiquiatra, suíça, que posteriormente viveu e exerceu sua medicina nos Estados Unidos.
Citar Kübler-Ross é fundamental quando queremos entender o processo que fica evidenciado nas etapas pelas quais passa um paciente fora de recursos terapêuticos de cura, chamados erroneamente, porém popularmente de “terminais”. Terminais, todos nós somos, nossos paciente, todavia, passam por um processo de morte, de luto, do qual seguem estágios que antecipam a passagem até seus derradeiros momentos finais.
Quando há uma morte súbita, é lógico, a pessoa não vivencia os estágios, porém a família passa por eles, já que o luto, a perda irreversível, será sentida após a morte. Já os que vivenciam uma morte mais demorada, num processo de aceleramento de sua doença, dentro de um crescente, que se diga poder ser sofrido ou isento de dor, dependendo dos recursos aos quais esse paciente tem acesso, ele passará por esses estágios antecipatórios de seu desfecho, tal como cita Küble-Ross, não necessariamente um após o outro, nem seguindo uma ordem perfeita, porém, didaticamente, é bom tê-los como base, pois, além de entendermos melhor nosso paciente e assessorá-lo da maneira mais adequada possível, passamos à família o entendimento de muitas das reações do doente, que, geralmente, ficam incompreendidas, mal interpretadas e, conseqüentemente, mal conduzidas por todos que lhe dispensam cuidados e atenção.
Muitos são os casos, por exemplo, de um sentimento de raiva, exteriorizado pelo paciente e sentido pela família ou profissionais que o cercam, como uma raiva de caráter pessoal, enquanto que esse sentimento é causado pela situação ímpar à qual o doente está sendo submetido naquele exato momento de vida. Não é isso que ele gostaria para sua vida, naquele instante, seus planos eram outros e foram bruscamente interrompidos diante de um diagnóstico de uma enfermidade com prognóstico reservado.
Mudar planos previamente estabelecidos, metas de vida, sonhos acalentados por anos, não é tarefa fácil, nem para o paciente que os vive, nem para a família. Ninguém tem por meta de vida morrer de uma doença fatal ou cuidar de um enfermo gravemente acometido por uma doença que o leve, ainda mais se o vínculo com o doente é marcado por um sentimento de intenso amor ou afinidade. São situações que requerem de nós uma disposição de adaptação, de mudança. Mudar hábitos, sabemos, é tarefa árdua, requer uma dose de entendimento e doação nem sempre fáceis de serem vividas.
Kübler-Ross, com toda sua bibliografia, conduz seus leitores a um entendimento do processo não só de Morrer, mas e, prin­cipalmente do Viver. Ler seus livros e assimilar seu conteúdo é uma escola, uma aprendizagem única. Retemos informações que acrescidas às nossas experiências de vida, somar-se-ão a um conhecimento, totalmente individualizado, que se transformará numa mudança, sentida e vivida por cada um como uma verdadeira transformação.
Aautora cita, por exemplo, as questões pendentes, aqueles assuntos não resolvidos que “empurramos com a barriga”, às vezes durante toda uma vida para tentar solucioná-los lá na frente, quando acometidos de uma doença grave e um fim próximo. Que bom seria se nós nos conscientizássemos de que viveríamos mais livres e plenos se tentássemos, pelo menos, resolver esses assuntos no decorrer da vida e não os deixássemos para o fim. Quanta vida desperdiçada de ser vivida de forma mais plena por questões inacabadas, sentimentos recolhidos, expressões amorosas não verbalizadas, medos, temores, receios.
Rubem Alves, um de meus escritores favoritos, pois fala com ternura e poesia assuntos tidos como densos, diz: “o medo enco­lhe a vida”. Já pensou ter uma vida encolhida, restrita por causa do medo? Ele mesmo segue dizendo: “quando se confia o medo some”. Confie, pelo menos, em você.
Voltemos aos estágios do Processo de Morte e Morrer propostos por Kübler-Ross, etapas estas que foram estudadas, de forma empírica, observando moribundos em seu leito de morte, seus sentimentos, vontades, reações e comportamentos.
• Primeiro estágio: negação e isolamento
Neste estágio, a pergunta que o doente faz após receber o diagnóstico é: “Não, eu não, não pode ser verdade”.
Inconscientemente, não aceitamos um fim para nossa existência, principalmente, um fim do qual não temos nenhum controle.
Passamos a vida toda achando que temos controle sobre nossas vidas. Vã ilusão, porém é uma sensação de falsa segurança dificilmente abandonada. Na verdade, temos um certo grau de controle, que pode ser resumido numa certa responsabilidade e previsibilidade dos acontecimentos dentro de nosso cotidiano, nada, além disso. Então, quando nos é dado um diagnóstico grave, esse controle sofre bruscos abalos em sua frágil estrutura. Além do que, sempre achamos que tudo o que pode acontecer de ruim acontece com nosso vizinho, nunca bate a nossa porta.
Há ainda um fator a ser considerado. A doença e a Morte estão, culturalmente, associados a castigo. Quando temos muita raiva de alguém, e isso já aconteceu pelo menos uma vez na vida de qualquer um de nós, costumamos exclamar: Que raiva, quero que ele morra! Morrer significa algo terrível, e só o desejamos a quem realmente não gostamos. Como aceitar, serenamente a morte de alguém, ou a nossa própria morte, se temos arraigado esse tipo de conceito do que vem a ser o morrer.
Dificilmente vemos a morte como um acabamento, um fechamento de um ciclo vital, necessário, inclusive a sobrevivência da espécie.
Há um ditado oriental que diz: quando jovens, sabemos que vamos morrer, mas não acreditamos, quando velhos acreditamos”.
Parece, assim, que a morte é mais aceita quando vem fechar uma vida já muito vivida, uma vida “velha”, com idade, com sua decrepitude. Morrer quando já não há mais prazer em viver. Mas será sempre assim? Quando ela vem romper abruptamente uma vida mais jovem, ela é concebida como um castigo, algo imposto de fora para dentro.
“Mas ele era tão bom, não merecia isso!”. “Que mal fez ele para morrer?” Essas perguntas somadas a tantas outras, dão-nos uma conotação de como vemos a morte e de como ela é sentida pela sociedade. Dá a impressão que só os maus, os perversos deveriam merecer uma doença que os atormentassem e um fim mortal. Os bons, pela sua bondade, deveriam estar isentos de tal “maldição”.
O estágio de negação serve, na verdade, como um “pára-choque”, um amortizador do impacto da notícia, aliás, bem vindo, pois naturalmente, se alguém tivesse que viver somente com a idéia de que vai morrer, não disponibilizaria seus recursos para a cura ou uma qualidade de vida melhor. O cuidado está em fazer com que essa negação não se converta numa negação para o tratamento, para com a vida, não esquecer nunca, que este paciente até morrer, estará vivo, e é essa vida que deve ser trabalhada, de forma que o enfrentamento da doença e/ou da morte possibilite uma libertação: morrer de alma curada, o que faz toda a diferença.
Quero fazer um parêntese aqui, para o leitor sentir, desde o primeiro estágio, o quão é importante perceber e avaliar esse processo, passo a passo, pois possibilita uma informação valiosíssima de como está nosso paciente e de como podemos ajudá-lo efetivamente.
Tirar um paciente dessa defesa de negação é deixá-lo sem retaguarda, acolhê-lo em sua negativa e sentir sua angústia é dar suporte emocional para que ele continue sua luta.
• Segundo estágio: raiva
“Por que eu?”
Essa pergunta deveria ser revista. Ao invés do ”Por que eu?”, deveríamos questionar o porquê de não ser eu! O que temos de tão diferente que as fatalidades da vida não nos poderiam acometer?
Quando a negação não é mais possível de ser mantida, vem a raiva. A raiva de todos, dos médicos, que não diagnosticaram com mais rapidez, dos familiares, que não o avisaram antes, das pessoas sadias, que estão levando suas vidas sem esse tormento.
Quero relatar aqui o que disse uma vez uma paciente quando conversávamos sobre sua doença: “Eu me dediquei sempre para os outros, deixei de viver para tomar conta de todo mundo, sacrifiquei-me em prol deles, e, agora, estou aqui, fechada neste quarto de hospital, doente, e eles, eles lá fora, vendendo saúde.”
Vocês podem imaginar a intensidade desses dizeres?
Há, ainda, o ressentimento, a revolta e a inveja. Ressentimento do que deveria ter sido feito e que não foi, da vida que poderia ter sido vivida, dos assuntos inacabados, dos projetos truncados, dos dizeres não falados. Lembram-se das “questões pendentes”?
O cuidado, nessa fase é entender que essa raiva não é pessoal, não é direcionada exclusivamente ao médico, a esposa, ou ao cuidador, é uma raiva da situação em si, que não pode ser mudada, não pode ser revertida. Não há uma outra vida a ser vivida, onde os erros serão refeitos, não há uma outra chance. O doente se depara com uma realidade só dele a qual deve aceitar como sendo sua. O acolhimento dessa situação, não traduzida como de esfera pessoal, facilita que o paciente vivencie sua raiva, entenda à qual natureza pertence e trabalhe suas defesas para melhorar sua qualidade de vida. Há, ainda, um tempo de vida a ser vivido, e coisas que podem ser temporizadas, talvez não todas, mas as que pudermos fazer acontecer, trarão uma sensação de liberdade e conquista para nosso paciente.
Aqui, lembro algo importantíssimo de ser mencionado, nunca, realmente nunca destitua o paciente de voz ativa, ele é respon­sável pela sua vida e pelo direcionamento com que conduzirá sua doença. É importante ele se sentir responsável pelo seu corpo e suas decisões, isso o fortalecerá. Aqui, fazemos uma ressalva aos pacientes cognitivamente comprometidos, pelos quais a família ou o cuidador terão que se responsabilizar pela condução do caso.
• Terceiro estágio: barganha
Se a doença e a morte trazem imbuídas um conceito de castigo, que tal revertermos o quadro?
De agora em diante farei um trato, e, geralmente, esse trato é negociável com Deus. Se não fui tão boazinha como deveria, cometi lá os meus pecados, é hora de mudar, daqui para frente farei tudo certinho, e, com certeza, Deus terá piedade de mim, verá meus esforços e conceder-me-á, ainda, alguns anos de vida.
Há uma tentativa de se sair bem sucedido, fazendo algum tipo de acordo que adie, de alguma maneira, o desfecho final, inevi­tável. Se com minha negação e minha raiva não fui atendido, quem sabe com bons argumentos e com mais calma, revendo minhas atitudes e meu comportamento, não chegarei a um bom acerto de contas.
Na verdade, a barganha é tão somente um adiamento, um prêmio que pode vir a acontecer, uma meta a ser perseguida com a finalidade de se prolongar a vida.
Às vezes, uma conversa franca e aberta com um aconselhamento espiritual pode favorecer o melhor entendimento neste estágio e do que pretendemos com ele, além de revisar a noção de pecado, culpa e castigo.
• Quarto estágio: depressão
Aqui o agravamento da doença faz-se mais presente, e o paciente não tem mais como negar sua doença. Sua negativa, sua raiva e barganha darão lugar a uma grande sensação de perda iminente.
Há, porém, uma diferença real entre a depressão que acompanha o primeiro estágio e a depressão deste estágio, quando o paciente se prepara para deixar este mundo.
A primeira é uma depressão reativa, e a segunda é uma depressão preparatória. São elas de naturezas diferentes.
A primeira é uma perda que ainda pode ser suprida. Uma mama retirada pode dar lugar a uma prótese. Já, na segunda, a perda é proveniente de uma situação real: deixar este mundo, pessoas queridas, objetos amados. O paciente está prestes a perder tudo e todos quem ama.
Nesse estágio, ajuda muito que deixemos o paciente verbalizar o seu pesar. Não são necessárias frases animadoras ou conversas otimistas. O silêncio falará mais que as palavras. O importante neste momento é se sentir amparado, nunca sozinho, saber que não estará sozinho na hora da passagem, do grande mistério que assola os derradeiros momentos. O toque, comunicação não verbal, fará as vezes das frases desnecessárias e inconvenientes. Na verdade, a depressão é um instrumento de preparação para o estado de aceitação, que se segue.
• Quinto estágio: aceitação
Já posso partir! Que meus irmãos se despeçam de mim
Saudações a todos vocês; começo minha
partida.
Devolvo aqui as chaves da porta e abro
mão dos meus direitos na casa.
Palavras de bondade é o que peço a vocês,
por último.
Estivemos juntos tanto tempo, mas recebi
mais do que pude dar.
Eis que o dia clareou e a lâmpada que
iluminava o meu canto escuro se apagou.
A ordem chegou e estou pronto para
minha viagem.
Rabindranath Tagore
Essa poesia de Tagore, para mim, resume o que o paciente sente quando teve a oportunidade de vivenciar a passagem pelos estágios anteriores. Ela resume, a cada frase composta, as etapas do partir. O paciente, neste estágio, tem uma necessidade imensa de perdoar e ser perdoado pelos outros e, até mais, ser perdoado por ele mesmo. Sabe que se doou, mas que recebeu mais do que pôde dar.
Teve a oportunidade de exteriorizar seus sentimentos e vontades, organizar a vida de maneira tal que já pode partir com um certo grau de serenidade. Muitos esperam resolver questões familiares, sociais, econômicas, espirituais.
Seu corpo já estará mais fraco e cansado, sentirá uma necessidade maior de dormir. Não se trata de um sono de fuga, como no da depressão, mas sim de um sono do recém-nascido ao inverso. Uma preparação. As coisas do mundo não importam mais, assuntos corriqueiros, notícias, barulho, não lhe dizem respeito, há uma introspecção para seu mundo interior. O segurar a mão e o estar próximo dizem mais do que palavras proferidas, o olhar se torna mais parado e distante, como se olhasse sem nada ver. Posteriormente, fica com os olhos cerrados por um tempo mais longo, até que não o abre mais.
Há, porém, os casos em que o paciente se debate e luta contra a morte, se agita e se inquieta até a hora em que suas forças cessam, e a batalha não pode ser mais travada. É importante estar atento a esses sinais e informar a família de seu surgimento como algo esperado. Assim os familiares e profissionais que cuidam do caso, entendem o processo e podem acolher todas as manifestações, sabendo que fazem parte de um quadro terminal.
Nesse último estágio, a família carece mais de cuidados. Entender o que o paciente precisa e respeitar suas necessidades é ímpar neste momento para que ele viva seus momentos derradeiros em paz.
A Psicologia pode oferecer ajuda nos cuidados a pacientes fora de recursos terapêuticos de cura através de Intervenções Psi­cossociais, as quais são esforços sistemáticos aplicados para influenciar beneficamente o enfrentamento e melhorar a qualidade de vida, através de meios educacionais e psicoterapêuticos.
A Intervenção Educacional é diretiva, utiliza informações, métodos cognitivos e de resolução de problemas.
A Intervenção Psicoterapêutica utiliza métodos psicodinâmicos para compreender e cuidar de reações emocionais.
Intervenção Psicoterapêutica:
• Encorajar a expressão de sentimentos – examinar as formas de enfrentar a incerteza do futuro e as preocupações existências.
• Atividade de escuta atenta (ativa) em atmosfera de acolhimento.
• Verificar a influencia de situações passadas (“questões pendentes”) relacionadas à situação presente.
• Busca de um novo significado de vida.
• Cuidar da dor do morrer ou da aceitação da morte – para muitos, a morte significa libertação do sofrimento.
• Possibilitar a cura espiritual. O homem espiritualizado atravessa o portal da morte com a visão de imortalidade da alma, o que proporciona uma morte consciente e menos dolorosa.
Para finalizar, cito uma frase de Morrie Schwartz, que escreveu dois livros antes de falecer de esclerose lateral amiotrófica (ELA). Os títulos de seus livros são: A Última Grande Lição (também em filme) e Lições Sobre Amar e Viver.

“Aprenda como viver, e você
saberá como morrer.
Aprenda como morrer, e
você saberá como viver”

Morrie Schwartz

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